Falácias (por Othon M. Garcia)
Falácias
Segundo Othon M. Garcia, “ainda que cometamos um número infinito de erros, só há, na verdade, do ponto de vista lógico, duas maneiras de errar: raciocinando mal com dados corretos ou raciocinando bem com dados falsos. (Haverá certamente uma terceira maneira de errar: raciocinando mal com dados falsos). O erro pode, portanto, resultar de um vício de forma — raciocinar mal com dados corretos — ou de matéria — raciocinar bem com dados falsos.” (1)
De acordo com o mesmo autor, o que diferencia o sofisma da falácia, é que, embora ambos sejam basicamente raciocínios errados, a falácia é involuntária. Ao passo que o sofisma tem como objetivo induzir a audiência ao engano, o raciocínio falacioso decorre de uma falha de quem argumenta. Quem usa sofismas, sabe o que está fazendo quando, por exemplo, tenta nos empurrar uma conclusão para a qual não dispõe de dados ou demonstrações suficientes. Quem se vale de falácias, por sua vez, simplesmente se enganou.
O conhecimento do que é ou não um raciocínio falacioso certamente é um dos mais úteis que existem quando vamos analisar criticamente qualquer assunto. As falácias e inconsistências lógicas abundam em nossa sociedade e são utilizadas o tempo todo, como podemos verificar facilmente nos pronunciamentos de políticos demagogos, entre outros casos. Elas permitem que alguém faça declarações aparentemente racionais e aceitáveis sem o mínimo necessário de conhecimento ou ainda fugindo de um tema e embaraçando os interlocutores, fazendo-os se desviarem do assunto tratado. Reconhecê-las nem sempre é fácil, especialmente quando aparecem em diálogos, onde podemos acabar engolindo coisas que, uma vez submetidas a uma análise mais profunda, se revelam sem fundamento. Existem áreas, até, onde uma falácia acaba se tornando o discurso predominante pelo qual um determinado grupo se manifesta. Na área de que tratamos, a religiosa, não é demais dizer que é o campo onde mais se cometem esses erros. Portanto, não é de se admirar que determinados incrédulos sejam tão resistentes aos assuntos religiosos: eles simplesmente se recusam, e com razão, a aceitar como verdades absolutas afirmações e raciocínios que violam a própria lógica.
Vamos agora examinar rapidamente algumas falácias e truques retóricos mais frequentes, a fim de que possamos não apenas nos prevenir contra eles, como também, quem sabe, mudarmos nossa maneira de falar às pessoas.
Obs: é importante notar que existem falácias de tal forma cristalizadas em certos grupos ou comunidades, tão repetidas e consagradas no seu discurso, que dificilmente terão sua falsidade reconhecida. Em se tratando de assuntos religiosos, isso se complica, pois o que é uma falácia para um, pode ser uma verdade irretorquível para outro.
Raciocínio circular ou petição de princípios
Esse é um erro comuníssimo em debates ou pregações religiosas. Trata-se simplesmente de afirmar a mesma coisa com outras palavras. Alguns exemplos:
1. “Por que a Bíblia é a Palavra de Deus? Ora, porque ela foi inspirada pelo próprio Criador.”
…ou ainda o que eu chamaria de “variação Tostines”
2. “A Bíblia é perfeita porque é a Palavra de Deus. E como sabemos que ela é a Palavra de Deus? Pela sua perfeição.”
Esse exemplo é fácil de encontrar, especialmente nos meios evangélicos mais conservadores. É importante ressaltar que ele foi posto aqui apenas para ilustrar um tipo de raciocínio falacioso muito frequente, não para desmerecer a Bíblia ou a crença de quem quer que seja.
Um exemplo laico agora:
3. “Eu acho que alpinismo é um esporte perigoso porque é inseguro e arriscado.”
Dizer que algo é “inseguro e arriscado” não é o mesmo que dizer que ele é “perigoso”? Ora, o que essa “explicação" acrescentou que justificasse a ideia de que alpinismo é perigoso? Nada. Simplesmente repetiu-se a primeira afirmação com outras palavras.
4. “Por que eu sou a pessoa mais indicada para o trabalho? Porque eu descobri que, dentre todos os outros candidatos, e considerando minhas qualificações, eu sou a melhor pessoa para o trabalho.”
Valem as mesmas observações. Porém prestemos atenção num detalhe: às vezes, quando a “justificativa” é muito longa, podemos nos perder e não notarmos que a pessoa acabou não dando evidências para aquilo que disse. Um exemplo trágico poderia ser a frase de Goebbels, propagandista do regime nazista alemão: “Uma mentira, repetida muitas vezes, acaba se tornando uma verdade”. Afirmações muito repetidas podem ganhar um statustal que as pessoas podem nunca ter parado para pensar realmente no porquê de acreditarem nelas. Crenças inculcadas desde a infância ou em períodos de fragilidade emocional são casos típicos. Por isso, tenhamos a máxima prudência com aquilo que nos chega aos ouvidos e com a maneira como abordaremos certas crenças arraigadas num debate; antes de questionar os outros, convém darmos uma olhada na nossa própria fé em certas premissas, que talvez nunca tenhamos analisado criticamente.
Egocentrismo ideológico
Essa provavelmente não será achada em manuais de lógica. O que eu batizei de “egocentrismo ideológico” nada mais é do que um primo do raciocínio circular. Trata-se da incapacidade ou recusa sistemática em se pôr de um ponto neutro para analisar alguma coisa. O cerne do problema, aqui, é mais a atitude do debatedor do que propriamente sua lógica. Mais uma vez, recorramos a exemplos reais e muito comuns:
1. “Como eu sei que a Bíblia contém toda a Palavra de Deus, perfeita e eterna? Ora, porque, conforme vemos em Segunda Timóteo 3:16…”
2. “Você tem que crer naquilo que Jesus disse, porque ele falou ‘Ninguém vai ao Pai senão por mim.’”
3. “A minha religião é a única verdadeira, e você não pode questionar isso. Veja só o que nosso fundador diz em…”
4. “Por que o Papa, em questões doutrinárias, é infalível? Porque o Concílio de…, sob a inspiração da Assistência Extraordinária do Espírito Santo dada ao líder da Igreja, que o promulgou, declarou assim.”
Onde o erro? Ora, todos os declarantes estavam conversando com alguém que é cético e está questionando a autoridade da fé que eles têm. E o que eles fazem para demonstrar que estão certos? Recorrem à mesma autoridade que está sendo questionada.
Apelar para uma autoridade que só é reconhecida por uma das partes é sempre desaconselhável quando a finalidade é a persuasão. Se em matérias científicas, por exemplo, o currículo de alguém pode dar uma boa ideia de sua capacidade para opinar sobre um assunto, em religião tal não se aplica da mesma forma. Por isso, é sempre bom recorrer a outros argumentos diante de um cético; a imposição de autoridade simplesmente não funcionará.
Supersimplificação e raciocínio “8 ou 80”
Essas são praticamente inevitáveis, e se você não se deparar com elas, é porque está debatendo filosofia ou seu interlocutor é diplomata profissional.
Um bom argumento deve resumir as questões em debate e simplificá-las para o leitor ou a audiência. Dizemos que há supersimplificação quando isso é feito de tal forma que muitos detalhes importantes são deixados de lado e o resumo feito só permite uma única conclusão. Exemplo:
1. “Os nazistas usaram alguns escritos de Nietzsche em sua propaganda. A irmã de Nietzsche era nazista. Portanto, Nietzsche era nazista.”
Já o raciocínio “8 ou 80”, conhecido também como falso dilema, é aquele que só admite duas possibilidades antagônicas numa determinada questão, mesmo que haja muitas mais, sendo que a pessoa que o utiliza está, claro, do lado certo. Essa falácia pode ser assim resumida:
2. “Ou você está totalmente certo ou eu estou totalmente errado.”
Exemplo radical, não? No entanto, essa é a forma como muitas pessoas pensam em determinadas áreas: sem meios-termos, tudo ou é preto ou é branco, sem variações de cinza. Esse é um meio confortável de simplificar demais assuntos complexos como moral e espiritualidade, pois é a negação do diálogo. Eis algumas possíveis aplicações religiosas desse raciocínio falacioso:
3. “A Bíblia alega ser a Palavra de Deus e sem erros. Se você achar um erro nela, então ela tem de estar totalmente errada.”
4. “Fulana tinha câncer e fez uma ‘cirurgia espiritual’ para ajudar na cura. E, de fato, ela se curou. Ou a cura de Fulana na ‘cirurgia espiritual’ foi um milagre de Deus ou um prodígio do demônio. Deus não age nessa religião. Então, só pode ter sido obra de Satanás.”
Cito esses exemplos por já ter visto alguém usá-los num debate. Fora a questão de fé envolvida aí, o erro de raciocínio é evidente, pois, no primeiro caso, o fato de achar um erro na Bíblia ou em qualquer outro livro religioso não significa invalidá-lo por inteiro, obviamente, mas apenas exigir do leitor um pouco mais de discernimento ao lê-los, sem o falso conforto de formar uma opinião inflexível e julgar tudo que ali está sem o trabalho de um maior exame. Já no segundo, fora o egocentrismo ideológico que não contribui para persuadir a audiência nem apresenta evidências para comprovar sua tese, excluem-se as outras possibilidades de explicação: da cura ter-se dado naturalmente, em virtude dos tratamentos médicos a que Fulana estava se submetendo, ou do fenômeno de sugestão, etc.
Essas falácias nos levam diretamente a uma outra, também muito comum, chamada…
Generalização apressada
Falácia de generalização apressada, como o nome indica, é aquela em que uma pessoa constrói algumas premissas para um argumento e, em seguida, o conclui rápido demais. Noutras palavras, é tirar uma conclusão com base em evidências insuficientes, julgar todas as coisas de um determinado universo com base numa amostragem muito pequena. Consequentemente, ela passa por cima de detalhes, fatores, circunstâncias e mesmo dos casos que poderiam refutar a universalidade de suas premissas. É claro que todo argumento presume algum grau de generalização, mas, neste caso, ela é excessiva. Vejamos dois exemplos:
1. “Minha avó tem dor de cabeça crônica. Meu vizinho também tem e descobriu que o motivo é um câncer. Logo, minha avó tem câncer.”
2.. “Nas duas vezes em que fui assaltado, os bandidos eram negros. Bem que minha mãe fala que todo negro tem tendência para ladrão!”
Dito assim, parece um erro tão idiota que uma pessoa teria de ter muito pouca inteligência ou instrução para incorrer nele. Mas não é bem assim. Esse tipo de falácia é muito frequente, dentre outras coisas, em certas frases discriminatórias muito usadas. Quem nunca ouviu algo parecido com os exemplos a seguir?
3. “O pastor da igreja X roubou o dinheiro dos fiéis. Fulano é pastor. Logo, também é ladrão.”
4. “Meu tio é candomblecista e já matou um bode para oferecer ao orixá. Beltrano foi ao terreiro de candomblé. Logo, ele também mata animais para o orixá.”
5. “Fulano entrou para a igreja X e ficou fanático. Logo, todos os fiéis da igreja X são fanáticos.”
6. “Fulano entrou para uma igreja protestante e ficou fanático. Logo, todos os protestantes são fanáticos.”
7. “Crentes/muçulmanos/bramanistas/etc. são todos fanáticos.”
8. “Todo americano é racista.”
É no dia-a-dia que esse tipo de erro, muito bom para cunhar bordões preconceituosos, é mais encontrado. Alguns de nós pode até ter crescido ouvindo frases dessa espécie, tendo-as incorporado de tal maneira que sequer lembramos de questioná-las. Frequentemente são generalizações feitas com base num único episódio particular, ignorando as diversas nuances que ele possa ter e aplicando suas características a todo um grupo de pessoas ou doutrinas. Devemos ter cuidado com elas, são falácias que podem simplesmente passar despercebidas por anos.
Ataque pessoal ou argumento ad hominem
Essa falácia é fácil de reconhecer. Consiste simplesmente em atacar uma pessoa em vez dos argumentos que ela expõe, usar um traço de seu caráter como pretexto para desqualificar ou ignorar o que ela diz. Pode ser usado quando não se sabe como refutar o que o oponente diz ou simplesmente por excesso de preconceito, sendo um meio muito cômodo (e desonesto) de fugir do debate. Vejamos:
1. “O que Fulano diz sobre o balanço da empresa não pode ser levado a sério, afinal ele traiu a mulher.”
2. “O senhor não tem autoridade para criticar nossa política educacional, pois nunca concluiu uma faculdade.”
3. “Beltrano não entende nada de espiritualidade, ele é gay.”
4. “A religião é uma coisa má. Veja só quantas guerras foram provocadas por ela.”
5. “Não deem ouvidos ao que ele diz. Como ele abandonou nossa fé, as críticas dele à nossa organização só podem ser mentiras.”
Talvez nesta última modalidade o argumento ad hominem seja a falácia com mais possibilidades de ser explorada autoritariamente, pois a melhor forma de se manter o controle sobre um grupo é justamente fazer com que ele evite qualquer contato com informações ou opiniões dissidentes. Não é por outra razão que uma das primeiras medidas de regimes políticos ilegítimos é a censura e perseguição a seus críticos e dissidentes. Religiosamente falando, isso é feito pela difamação de ex-membros, especialmente se eles tentam explicar as razões por que deixaram o grupo religioso a que pertenciam. Em vários casos, generalizações excessivas, termos pejorativos e mesmo a proibição de qualquer contato são usados para se criar a ideia de que todos os ex-membros têm falhas de caráter, ignorando a possibilidade de abandono por razões de consciência, discordância doutrinária e toda uma série de fatores que podem levar alguém a reavaliar honestamente suas crenças. Assim, abafa-se na fonte a possibilidade de um debate ou questionamento por parte dos que ficaram, já que eles serão desencorajados a procurar entender os motivos dos dissidentes.
6. “Os argumentos da empresa X contra nossa fusão não merecem crédito, pois eles são nossos concorrentes e seus interesses comerciais estão em jogo.” (Também chamado de culpa por associação)
Neste último exemplo, o fato de que a empresa X tem motivos comerciais para se opor à fusão das concorrentes não invalida os seus argumentos e tampouco faz com que os daqueles a favor da fusão mereçam mais crédito. Fosse assim, por exemplo, poderíamos invalidar a prioritodo os argumentos de defesa do réu de um processo judicial, já que são motivados pelo seu interesse em continuar livre. Embora em questões como essa o interesse ou as crenças particulares de alguém possam sugerir que os argumentos apresentados provavelmente serão tendenciosos, isso não é desculpa para que sejam ignorados ou abordados apenas de forma indireta e inadequada através de um truque retórico.
Outra variante nos leva ao famoso ditado “faça o que eu digo, não o que eu faço”, o chamado tu quoque(latim para “você também”).
7. “Você diz que o cigarro é um vício horrível, mas ainda não conseguiu parar. Por que eu deveria lhe dar ouvidos, então?”
O fato de a pessoa que nos fala ainda fuma não quer dizer que o cigarro seja menos prejudicial. Ela pode não ser o melhor exemplo de conduta, mas nem por isso deixa de ter razão nesse ponto.
Um argumento ad hominemnão é necessariamente uma falácia, desde que aplicado numa circunstância adequada. Por exemplo, se o seu banco nomeia para o cargo de diretor uma pessoa com um passado de notórios crimes financeiros, você não pode ser recriminado por procurar outra instituição. Neste caso, a probidade da pessoa da pessoa é tão relevante quanto a lógica do que ela diz. Trata-se, então, de uma precaução razoável e justificada. Agora, se essa mesma pessoa, por outro lado, resolve debater a possibilidade de vida após a morte, já é outra história…
Apelo à ignorância
Resume-se na frase “ausência de evidência não é evidência de ausência”. Consiste em usar a falta de provas (ou a inabilidade do oponente em apresentá-las) a favor ou contra algo para provar uma outra tese.
1. “Você não tem provas de que Deus existe. Logo, ele não existe.”
2. “Você não tem provas de que Deus não existe. Logo, ele existe.”
3. “É claro que houve um dilúvio; ninguém nunca conseguiu provar que não houve.”
Acontece que a mera falta de provas não prova nada. No máximo, pode sugerir, mas nunca fechar questão. O fato de eu não poder provar empiricamente que, digamos, os buracos negros existem não quer dizer que eles não podem existir necessariamente. Ora, se temos duas teses opostas, e uma não tem evidências confiáveis a seu favor e a outra sim, fiquemos com esta. Mas se ela também não possui evidências, não será o problema da outra que a tornará legítima. Por isso, devemos tomar todo o cuidado para não cair num falso dilema (vide acima) e nos deixemos enganar por dicotomias falsas, como no exemplo a seguir:
4. “O ‘elo perdido’ entre o homem e os primatas não foi encontrado até hoje. Isso nos mostra que a Teoria da Evolução está errada e o livro bíblico de Gênese é que está com a razão ao falar da criação do primeiro casal por Deus.”
Aqui o autor da frase, além de reduzir toda a Teoria da Evolução ao caso do Homo sapiens, esqueceu que o fato de que se ela, hipoteticamente, está errada, não quer dizer que o Gênese esteja certo.
Apelo à multidão
Quem conhece a expressão “maria-vai-com-as-outras” certamente saberá quando uma falácia de apelo à multidão está sendo usada. Basicamente, esse é o tipo de raciocínio que diz “se todos fazem, então eu devo fazer também”. Políticos bons de voto adoram essa linha de argumento, religiosos proselitistas também.
1. “Você não acha que se uma religião cresce tanto em tão pouco tempo é porque Deus está com ela?”
2. “Dez milhões de pessoas não podem estar erradas. Junte-se à nossa igreja você também.”
3. “Isso é uma verdade tão sublime que um milhão de pessoas já a aceitaram como regra de fé.”
A questão essencial aqui é que quantidade não é critério da verdade. O que esse tipo de falácia faz é desviar a atenção do tema tratado para um outro, aparentemente importante, mas que é um tópico à parte. O fato de tantas pessoas acreditarem em algo não significa que seja verdade. Por exemplo, há poucos séculos, acreditava-se que o oceano era repleto de monstros que inviabilizariam viagens transatlânticas, e hoje podemos viajar em cruzeiros ao redor do mundo com uma boa margem de segurança. Em religião, especificamente, é algo ainda pior: se dez milhões acreditam numa coisa, uns 300 milhões acreditam em outra bastante diferente; e mesmo a religião mais significativa numericamente não tem uma vantagem tão grande, pois a soma das outras é ainda superior ao número de fiéis dela. Existem formas mais inteligentes e honestas de se buscar o consenso do interlocutor e da audiência.
Apelo ao medo ou argumento ad baculum
Aqui, o instrumento de coerção não é a pressão da maioria, mas o temor das consequências de não adotarmos o ponto de vista da pessoa com quem debatemos. Mais um exemplo tirado de diálogos religiosos:
1. “Quanto ao inferno, veja só: eu acredito, você não. Se eu estiver errado, e você certo, não terei perdido nada. Mas já parou para pensar que, se eu estiver certo e você errado, você pode sofrer eternamente por isso?”
Ora, isso é um raciocínio ou uma ameaça? Pois um raciocínio é uma demonstração racional da validade de uma determinada ideia, o que não é o caso. Então como analisar esse tipo de argumento? Bem, existem dois tipos de razão para se adotar uma determinada crença: a racional e a prudente. A primeira é baseada na lógica e na objetividade; a segunda, em algum outro fator importante para a pessoa, como medo ou benefício pessoal, mas que não influi na veracidade ou falsidade da crença. Quando alguém usa um argumento ad baculum, está na realidade dizendo que, se uma ideia ou concepção nos assusta, então é melhor crer que ela é verdade, mesmo que não haja uma razão lógica para demonstrá-la. É fácil mostrar o absurdo disso, bastando mudar o motivo do medo:
2. “Eu acredito que o bicho-papão mora no armário, você não acredita. Se eu estiver errado, não terei perdido nada. Mas já parou para pensar que, se eu estiver certo e você errado, ele pode devorar você?”
Ou ainda, mais sutilmente:
3. “É melhor você votar pela condenação do réu ou você pode ser a próxima vítima dele.”
Se para condenar o réu é necessário apelar para o medo dos jurados em vez de para as provas, então algo muito errado deve estar acontecendo…
Apelo à tradição
Uma variedade do apelo à multidão, só que o argumento fundamental neste caso é “quanto mais antigo, melhor”. Quando uma pessoa apela para a tradição, está apostando que crenças antigas estão sempre certas, o que obviamente não é verdade, como a medicina demonstra quase todos os dias. Vejamos alguns exemplos:
1. “A Astrologia é uma arte adivinhatória praticada há milhares de anos no Oriente. Conta-se que os antigos reis da Babilônia teriam feito uso dela para saber os dias mais propícios para as batalhas. Até os imperadores chineses recorriam aos astros para guiarem seus passos no governo. Com esse currículo respeitável, é inadmissível que ainda não a considerem uma ciência.”
2. “É claro que existem duendes, as lendas sobre eles têm séculos e séculos de existência.”
3. “Nosso livro sagrado têm mais de 3 mil anos de idade e está intacto, logo, só ele pode conter a verdadeira revelação divina.”
4. “Os primeiros mártires costumavam fazer ou acreditar nisso. Então deve ser bom.”
5. “Essas práticas remontam aos primeiros séculos da nossa igreja. Como você pode questioná-las?”
Familiar? Esse tipo de argumentação ignora que o fato de um grande número de pessoas, durante muito tempo, crer que uma coisa é verdade não é motivo para se continuar crendo. Por exemplo, a escravidão era considerada justificável em inúmeras nações durante milênios, e nem por isso, hoje, temos que aceitá-la como uma prática legítima.
Apelo à autoridade
Quando queremos reforçar nossa tese, podemos recorrer à opinião de pessoas respeitáveis para corroborá-la. Assim, por exemplo, se quero defender o uso de uma determinada substância no tratamento de uma doença, poderei citar médicos renomados e idôneos, desde que eles tenham experiência no combate a essa enfermidade e que tenham testado a eficácia da substância em questão. Isso é perfeitamente válido, e até desejável. No entanto, nem sempre se tem esse cuidado na seleção de citações, e acabamos por citar quaisquer personalidades célebres como se tivessem mais autoridade que qualquer outro mortal em questões em que não são especialistas. Ser famoso não quer dizer estar certo sobre tudo. Por exemplo:
1. “Dionne Warwick é uma boa cantora, mas isso não significa que o serviço esotérico por telefone para o qual ela faz propaganda realmente funcione e seja a solução de todos os problemas da vida.”
2. “O mesmo vale para Mayara Magri e o Instituto Omar Cardoso, bem como para todos os anúncios publicitários envolvendo celebridades do show-business.”
Da mesma maneira, principalmente ao se tratar de assuntos polêmicos, fazer citações breves de especialistas famosos, ainda que afins com a questão em pauta, não significa necessariamente que eles estão defendendo a tese em questão ou concordando com todos os pontos que a compõem. Depoimentos de somente uma ou duas frases aparentemente favoráveis em geral não nos permitem ter uma ideia clara de até que ponto aquele suposto especialista se aprofundou no assunto e no contexto em que aquelas palavras foram ditas. Para termos uma maior segurança nesse ponto, ao nos depararmos com o depoimento dessas autoridades, é melhor que eles sejam suficientemente detalhados para que possamos ter certeza de que sabiam do que estavam falando e das razões pelas quais são favoráveis ou não a uma determinada ideia. O bom senso exige que, antes de nos curvarmos a títulos e fama, procuremos saber que argumentos estão sendo usados e se eles realmente merecem crédito. Afinal, mesmo os sábios têm suas falhas e equívocos.
Eufemismos
São palavras que designam coisas potencialmente desagradáveis de forma mais suave. Usadas até não mais poder por políticos e religiosos, são uma forma polida e ilusória de tornar belo o feio, e fazer com que mesmo as ideias mais repugnantes se tornem mais aceitáveis. Seu apogeu está no uso de expressões consideradas politicamente corretas, tão populares nos Estados Unidos, e que chegam a ser ridículas:
1. “Indivíduo verticalmente desafiado — anão.”
2. “Homem afro-americano — homem negro (e por que não nipo-americano, sino-americano, teuto-americano?).”
Já outros são mais universais e menos risíveis:
3. “Apropriar-se ilicitamente de dinheiro público — roubar dinheiro público.”
4. “Ser convidado a retirar-se do recinto — ser expulso do recinto.”
Eufemismos normalmente são dispensáveis, só tendo alguma utilidade quando se quer evitar ferir a suscetibilidade de alguém, que, no caso do politicamente correto, é exagerada. Um bom argumento deve ser claro, conciso e de preferência sem eufemismos que possam atrapalhar a comunicação. Se eles são usados com muita frequência, pode ser o caso de que nosso interlocutor esteja tentando minimizar ou disfarçar alguma coisa.
Premissas contraditórias
Quando as bases do argumento são mutuamente excludentes. Por exemplo:
1. “O que acontece quando uma força irresistível encontra um obstáculo irremovível?”
Ora, o erro aqui é que não existe força irresistível. Se existisse, então não haveria um obstáculo irremovível, e vice-versa. Logo, se a pergunta não é coerente consigo mesma, não pode haver resposta.
2. “Se Deus pode tudo, ele poderia fazer uma pedra tão pesada que nem ele mesmo pudesse levantar?”
Novamente, a pergunta não faz sentido, pois admitir que Deus pode criar tal pedra é admitir também que ele não pode tudo; e admitir que ele não pode criar a pedra é o mesmo que negar sua onipotência. Então, não se tem aí nenhum fundamento que possa dar margem a um raciocínio legítimo.
Mais um exemplo, desta vez peculiar às religiões salvacionistas, em especial as cristãs:
3. “Deus é o criador onisciente de todas as coisas. Então ele também criou o mal? Não, o mal é criação das suas criaturas.”
Vejamos: se Deus é o criador de tudo, e ainda por cima onisciente (ou seja, sabedor de tudo, mesmo do futuro), como se pode dizer que o mal não é também criação dele? Tal como estão, as afirmações se contradizem, pois mesmo que Deus não tenha criado o mal diretamente, se ele é onisciente e cria os seres já sabendo que praticarão atos maus, o máximo que se pode dizer é que ele é seu criador indireto. A própria ideia de ser a origem de tudo que existe implica não só ser criador daquilo que consideramos bom como também do que consideramos mau. Mas se o mal foi criado a despeito da vontade ou do conhecimento de Deus, o que faz mais sentido, então ele não seria onipotente. E aí teríamos mais uma contradição.
Redução ao absurdo
É um raciocínio levado indevidamente ao extremo. Designado apropriadamente em inglês pela expressão “slippery slope”, ou seja, rampa escorregadia, na qual um simples empurrão basta para que se perca totalmente o controle. Essa falácia pode ser expressa assim:
1. “Você permite que seu filho de seis anos roube um beijo na bochecha da coleguinha de escola hoje e logo ele vai querer agarrá-la e, mais tarde, se tornará um maníaco sexual. Você não tem vergonha?”
Ou seja, quem faz uso dessa falácia parte do princípio de que um evento qualquer vai necessariamente levar a outro sem qualquer possibilidade de gradação ou razão aparente, como numa bola de neve montanha abaixo. É uma mistura de generalização apressada com um determinismo pessimista, pois só reconhece uma cadeia de eventos possíveis a partir de um fato. No exemplo citado, pode até ser que o menino tenha alguma tendência problemática, mas certamente não terá sido o beijo na coleguinha o fator responsável por isso e de uma criança que dá um beijo na bochecha aos seis anos até o adulto sexualmente perturbado vai uma boa distância. A falácia relaciona o beijo ao comportamento doentio sem qualquer motivo aparente, ignorando todos os graus entre uma coisa e outra.
Mais alguns exemplos:
2. “Se você permite o aborto em casos de risco de vida para a mãe nos hospitais públicos, logo todo o mundo vai querer abortar por qualquer motivo, ninguém mais vai valorizar a gravidez e a taxa de natalidade vai acabar despencando, prejudicando a economia do país.”
3. “A crença na vida após a morte é perniciosa, pois quem acredita nisso sempre vai achar que as coisas vão melhorar no Além e, portanto, vai se acomodar à sua situação atual, não lutar por seus direitos e permanecer em tamanha inatividade que a nação logo vai estar subjugada pelos exploradores internacionais. É por isso que nosso país seria muito melhor se todos fossem ateus.”
Agora alguns só aparentemente mais aceitáveis:
4. “Se deixarmos o governo vender uma estatal hoje, daqui a dois ou três anos o país inteiro vai estar nas mãos do empresariado internacional.”
5. “Não podem censurar meu livro. Eles começam censurando só o meu e logo vão estar queimando todos os livros em praça pública e voltaremos ao tempo da Inquisição!”
6. “Se eu fizer uma exceção para você vou ter de fazer para todo o mundo.”
7. “Se você cumprimentar aquele seu amigo que abandonou nossa igreja, ele vai encher sua cabeça de mentiras, você vai perder a fé e vamos ter de tratar você como um traidor também.” (cf. Apelo ao medo ou argumento ad baculum e Ataque pessoal ou argumento ad hominem, acima).
Nota
1 — Comunicação em prosa moderna. 7. ed. rev. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1978, p. 307.
- fonte: Azel´s Home Page
leituras adicionais
- ()Lógica & FaláciasMatthew
- Guia de Falácias Lógicas do Stephen (Stephen Downes)
- Como a ciência evolui? (Karl Popper)
- A gama do vazio (Emil M. Cioran)
- Da simpatia (Adam Smith)
Guia das falácias de Stephen Downes
Tradução e adaptação de Júlio Sameiro
O objectivo de um argumento é expor as razões (premissas) que sustentam uma conclusão. Um argumento é falacioso quando parece que as razões apresentadas sustentam a conclusão, mas na realidade não sustentam. Da mesma maneira que há padrões típicos, largamente usados, de argumentação correcta, também há padrões típicos de argumentos falaciosos. A tradição lógica e filosófica procurou fazer um inventário e dar nomes a essas falácias típicas e este guia faz a sua listagem.
- (manobras de diversão)Falácias da Dispersão
- Falso dilema (falsa dicotomia)
- Apelo à ignorância
- Derrapagem (bola de neve ou declive ardiloso)
- Pergunta complexa
- (em vez de razões)Apelo a Motivos
- Apelo à força
- Apelo à piedade
- Apelo a consequências
- Apelo a preconceitos
- Apelo ao povo
- (falhar o alvo)Fugir ao Assunto
- Ataques pessoais
- Apelo à autoridade
- Autoridade anónima
- Estilo sem substância
- Falácias Indutivas
- Generalização precipitada
- Amostra não representativa
- Falsa analogia
- Indução preguiçosa
- Omissão de dados
- Falácias com regras gerais
- Falácia do acidente
- Falácia inversa do acidente
- Falácias causais
- Post hoc
- Efeito conjunto
- Insignificância
- Tomar o efeito pela causa
- Causa complexa
- Falhar o alvo
- Petição de princípio
- Conclusão irrelevante
- Espantalho
- Falácias da ambiguidade
- Equívoco
- Anfibologia
- Ênfase
- Erros categoriais
- Falácia da composição
- Falácia da divisão
- Non sequitur
- Falácia da afirmação da consequente
- Falácia da negação da antecedente
- Falácia da inconsistência
- Falácias da explicação
- Inventar factos
- Distorcer factos
- Irrefutabilidade
- Âmbito limitado
- Pouca profundidade
- Erros de Definição
- Definição demasiado lata
- Definição demasiado restrita
- Definição pouco clara
- Definição circular
- Definição contraditória
Falácias da dispersão
Stephen Downes
Universidade de Alberta
Cada uma destas falácias caracteriza-se pelo uso ilegítimo de um operador proposicional, uso que desvia a atenção do auditório da falsidade de uma certa proposição.
Falso dilema
É dado um limitado número de opções (na maioria dos casos apenas duas), quando de facto há mais. O falso dilema é um uso ilegítimo do operador "ou". Pôr as questões ou opiniões em termos de "ou sim ou sopas" gera, com frequência (mas nem sempre), esta falácia.
Exemplos:
- Ou concordas comigo ou não. (Porque se pode concordar parcialmente.)
- Reduz-te ao silêncio ou aceita o país que temos. (Porque uma pessoa tem o direito de denunciar o que entender.)
- Ou votas no Silveira ou será a desgraça nacional. (Porque os outros candidatos podem não ser assim tão maus.)
- Uma pessoa ou é boa ou é má. (Porque muitas pessoas são apenas parcialmente boas.)