REVISÃO (Língua Portuguesa, Literatura e Redação)

Sobre COESÃO e COERÊNCIA

Sobre COESÃO e COERÊNCIA

 

TECENDO A MANHA
"Um galo sozinho não tece a manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro: de outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzam
os fios de sol de seus gritos de galo
para que a manhã, desde uma tela tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão".


Eu gosto muito de João Cabral e esse belíssimo poema dele exemplifica a verdadeira arte poética: um perfeito casamento entre forma e conteúdo, expressão e leitura de mundo [como diriam alguns de meus professores de Literatura na faculdade]. Ou, como afirmam os críticos: "a matéria e a forma do Verbo" (Alceu Amoroso Lima); "linguagem carregada de significado até o máximo grau possível" (Ezra Pound). A função poética da linguagem: uma especial arrumação das palavras, quer na seleção, quer na combinação delas, quer na organização sintática do enunciado.
Entre outras leituras possíveis, podemos afirmar que João Cabral lança mão da imagem dos galos tecendo a manhã, num trabalho coletivo ("Um galo sozinho não tece uma manhã"), metáfora de uma sociedade livre que só é possível pelo trabalho solidário. Este artigo, porém, aborda os aspectos gramaticais e nosso foco volta-se para alguns aspectos linguísticos; em particular, para dois: a estrutura sintática e a seleção vocabular. Para dar a ideia de trabalho coletivo, o poeta, ao se referir ao grito lançado por um galo, interrompe a frase e corta a ação - "esconde" o verbo -, que é retomada por outro galo: "De um que apanhe esse grito que ele [lançou] / e o lance a outro [galo]; de um outro galo / que apanhe o grito que um galo antes [lançou] / e o lance a outro [galo]". E, assim, o poema vai sendo tecido, como uma teia.
A seleção vocabular - o campo semântico trabalhado pelo poeta - nos remete ao trabalho de construção de um tecido (e de um texto): tecendo, tece, fios, teia, tela, tenda, toldo, tecido (verbo), tecido (substantivo), lançar (lançadeira é o nome de uma peça de tear), cruzar (passar por, percorrer, apresentar pontos de interseção). Até o ponto de criar um termo: entretendendo, que sugere a fusão de "entretecer" com "entender". Enfim, é um texto coeso (porque todo amarrado), com especial trabalho vocabular e sintático.
Claro que este artigo é para quem já tem alguma noção de coerência e coesão e dos aspectos envolvidos no processo, mas se você, por exemplo, tiver dúvidas quanto ao vocabulário usado no texto, visite nosso glossário.


Este artigo pertence ao Análise de Textos.
Plágio é crime e está previsto no artigo 184 do Código Penal.

A forma certa de entender as palavras
Posted: 22 Jul 2013 03:54 AM PDT
Confesso que gastei alguns minutos para escrever o título deste artigo. Várias eram as possibilidades. Dentre elas eu tinha “Sentido próprio e sentido figurado”, “Denotação e conotação” e por aí iam as alternativas. Resolvi apelar para o mais simples, pois querendo ou não, a dificuldade que as pessoas têm ao interpretar o texto começam mesmo em estabelecer o que é sentido próprio e sentido figurado. Por mais incrível que pareça, pessoas com um conhecimento de mundo até razoável pecam na hora de um concurso público justamente nas questões mais simples. Na verdade elas caem do cavalo por  causa da confiança excessiva. Vamos então, de uma forma um pouco mais técnica, entender esse assunto e complementarmos o que abordamos no post “Aprenda tudo sobre poesia”.

As Palavras e as Coisas
Quando se pronuncia um nome, ouve-se um som que evoca no espírito uma imagem, que é uma espécie de cópia, um fantasma criado pela imaginação. Esta, estimulada pelas palavras, tem o poder de evocar as coisas, na ausência delas, por imagens carregadas dos sentidos inerentes àquilo que representam. Por exemplo, quando ouvimos a palavra "gato", nosso espírito cria a imagem visual de um felino doméstico dotado das qualidades inerentes à sua espécie. Mas não é um gato "de verdade", é um gato fictício, criado por nossa imaginação.

As palavras dão nomes às coisas, mas não se confundem com elas. As coisas existem, independentemente de seus nomes. Se lhe derem outro nome, uma rosa não deixa de ser  o que é.
Os nomes são entidades cujos significados dependem de convenções inerentes a uma determinada língua. Assim, suponhamos que a residência de uma família inglesa é vendida para uma família francesa, que, após viver ali algum tempo, a vence para uma família alemã. A casa seria chamada house, em inglês, maison, em francês, Haus, em alemão: são três entidades sonoras diferentes, que podem servir para nomear a mesma coisa.
Inversamente, uma só palavra pode designar coisas e evocar imagens inumeráveis. Retomemos o exemplo do vocábulo "rosa". No âmbito da língua portuguesa, ele pode ser empregado para designar todas as flores dessa espécie, independentemente de suas diferenças. Além disso, se pedirmos a todas as pessoas de um auditório que imaginem uma rosa, cada uma delas formará uma imagem diferente em seu espírito, apesar das semelhanças que possam ocorrer. Mais ainda, sabe-se que uma palavra pode designar coisas diferentes. Elas têm como propriedade a polissemia, isto é, elas podem possuir muitas significações. Por exemplo, o vocábulo "campo" pode referir-se a uma paisagem rural, ao espaço onde se pratica um esporte, a uma área de atuação profissional, dentre outras possibilidades. Esse poder de as palavras evocarem uma multiplicidade de imagens é potencializado na Literatura, que muito valoriza essa propriedade chamada polissemia.
E agora? O que é Sentido Próprio e Sentido Figurado?
As palavras podem ser usadas em sentido próprio ou figurado. Quando são usadas em sentido próprio, a imagem que elas sugerem é a da própria coisa nomeada, como o gato de nosso exemplo inicial; mas, ao usá-las em sentido figurado, ocorre uma multiplicação de imagens diferentes, que se mesclam de modos variados, criando uma expansão do sentido. Por exemplo, quando se identifica uma coisa com o nome de outra, o sentido original da primeira se expande, absorvendo o da segunda, como ocorre no seguinte caso: ao conversar com um amigo, um rapaz chama sua namorada de "gata". A palavra que ele usa lança imagens da fêmea do felino, de modo a afetar o espírito do ouvinte. Este percebe que "gata" significa a namorada, a quem se atribui características muito apreciadas do animal referido em lugar da moça: sensualidade, elegância, flexibilidade, um certo mistério etc. Houve ali uma transposição de sentido de uma palavra para outra. Essa operação é chamada metáfora.
A imaginação é a faculdade que permite o uso desse modo oblíquo de nomear, que pode ou não estar presente nos procedimentos da linguagem cotidiana, mas é conduta fundamental na Literatura.
Então o que é Denotação e Conotação?
Uma palavra escrita é um sinal gráfico, que representa um som. Quando a lemos, ela sugere uma imagem acústica que é portadora de uma ideia. A ciência linguística chama a imagem acústica da palavra de significante, enquanto a sua ideia é chamada de significado. A significação ou sentido da palavra nasce da união dos dois elementos que a constituem.
O sentido de uma palavra depende da relação que ela estabelece com a coisa nomeada. Se a palavra "gata" se refere à gata, fêmea do felino, ela está sendo usada em sentido referencial ou denotativo. Denotação é o sentido próprio da palavra, tal como vem definido primeiramente nos dicionários. Mas, se a mesma palavra é usada em vez de "namorada", como no exemplo acima, então o seu sentido é figurado ou conotativo. Conotação é o entrelaçamento do sentido próprio da palavra com imagens associadas por semelhança ou proximidade, evocadas pela imaginação.
Na comunicação pela palavra, a denotação é garantia de entendimento entre pessoas de mesma língua. Ela é fundamental quando se quer rigor e precisão, quando se requer entendimento inequívoco, como no caso do discurso científico, que procura evitar a conotação, comum na vida cotidiana e essencial na Literatura.
Vejamos a dança de sentidos denotativos e conotativos, num exemplo tirado de um soneto de Gregório de Matos. O poeta se dirige a uma jovem chamada Maria, por quem estava apaixonado e que, mais tarde, tornou-se sua esposa, dizendo o seguinte:
Goza, goza da flor da mocidade,
que o tempo trota a toda ligeireza
e imprime em toda flor sua pisada.
Ao lermos a palavra flor, nosso espírito pode evocar inúmeras imagens, porque ela não designa uma espécie vegetal em particular, refere-se a todas, naquilo que elas têm em comum. Assim, nossa imaginação pode evocar indiferentemente uma rosa, ou um cravo, um crisântemo, um lírio etc. Junto a essas formas, evocamos também uma série de qualidades comumente associacas a elas: perfume, cor, maciez, delicadeza, beleza, dentre outras.
No entanto, o vocábulo flor acompanhado da expressão da mocidade. Não se trata, portanto, de nenhuma "flor" propriamente dita. Que "flor" seria esta, então?
A expressão "flor da mocidade" é um lugar comum que indica o momento mais belo e pleno da juventude. O vocábulo "flor", então, é empregado em sentido conotativo, ou figurado, de modo a carregar o adjunto "da mocidade" daquelas qualidades evocadas pela imaginação.
Agora, sabendo-se que o poema é dirigido a uma mulher, percebe-se que o texto se refere à flor da mocidade de uma jovem do sexo feminino, à qual se apela insistentemente para que aproveite esse belo momento de sua existência e os prazeres que lhe são próprios:
A repetição do verbo "gozar", usado no imperativo, serve de estímulo para que a jovem se entregue ao deleite que advém de todas as coisas singelas que, como vimos, a flor da mocidade conota.
Acontece que esse mesmo verbo, que indica o prazer em geral, também é usado comumente no sentido específico do êxtase sexual, sentido que se impõe no contexto do poema como um todo e do verso em questão. Isso porque a ideia de gozo é contaminada pela imagem da mulher incitada a desfrutar da flor da mocidade.
Um giro semântico recupera o sentido denotativo da palavra "flor", isto é, órgão da reprodução sexuada das plantas superiores (Dicionário Aurélio), usada conotativamente como metáfora sexual da mulher amada. Assim, o verso que estamos analisando tem um sentido conotativo ingênuo que se pode traduzir na fórmula "aproveita as belas e boas coisas de tua vida no momento em que ela se abre para o mundo como uma flor".
Mas, o resgate do sentido denotativo da "flor" traz à tona a noção de sexualidade, gerando, no contexto do poema, uma outra conotação, maliciosa, cujo sentido é o de um convite aos prazeres do amor.
Podemos perceber como se articulam a imaginação e as imagens com o campo das significações nesse pequeno e cioso exemplo poético. Pudemos, assim, observar como as imagens criadas pelas palavras poéticas são múltiplas e de várias espécies, e como elas se conjugam para carregar o discurso de significado, no entrelaçamento dos sentidos próprios (denotati-vos) e figurados (conotativos).


Este artigo pertence ao SITE Análise de Textos.


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