REVISÃO (Língua Portuguesa, Literatura e Redação)

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Leituras obrigatórias UFRGS FERNANDO PESSOA

Leituras obrigatórias UFRGS FERNANDO PESSOA

GREGÓRIO DE MATOS GUERRA – Seleta

 

 

 

 

01 - A Nosso Senhor Jesus Christo com actos de arrependimento e suspiros de amor

Ofendi-vos, Meu Deus, bem é verdade,

É verdade, meu Deus, que hei delinqüido,

Delinqüido vos tenho, e ofendido,

Ofendido vos tem minha maldade.

 

Maldade, que encaminha à vaidade,

Vaidade, que todo me há vencido;

Vencido quero ver-me, e arrependido,

Arrependido a tanta enormidade.

 

Arrependido estou de coração,

De coração vos busco, dai-me os braços,

Abraços, que me rendem vossa luz.

 

Luz, que claro me mostra a salvação,

A salvação pertendo em tais abraços,

Misericórdia, Amor, Jesus, Jesus.

 

 

 

02 - A Jesus Cristo Nosso Senhor

Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado,

Da vossa piedade me despido,

Porque quanto mais tenho delinqüido,

Vos tenho a perdoar mais empenhado.

 

Se basta a vos irar tanto um pecado,

A abrandar-nos sobeja um só gemido,

Que a mesma culpa, que vos há ofendido,

Vos tem para o perdão lisonjeado.

 

Se uma ovelha perdida, e já cobrada

Glória tal, e prazer tão repentino

vos deu, como afirmais na Sacra História:

 

Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada

Cobrai-a, e não queirais, Pastor divino,

Perder na vossa ovelha a vossa glória.

 

 

03 - Inconstância dos bens do mundo

Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,

Depois da Luz se segue a noite escura,

Em tristes sombras morre a formosura,

Em contínuas tristezas a alegria.

 

Porém se acaba o Sol, por que nascia?

Se formosa a Luz é, por que não dura?

Como a beleza assim se transfigura?

Como o gosto da pena assim se fia?

 

Mas no Sol, e na Luz, falte a firmeza,

Na formosura não se dê constância,

E na alegria sinta-se tristeza.

 

Começa o mundo enfim pela ignorância,

E tem qualquer dos bens por natureza

A firmeza somente na inconstância.

 

 

04 - À cidade da Bahia (2) (soneto)

Triste Bahia! Oh quão dessemelhante

Estás, e estou do nosso antigo estado!

Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado,

Rica te vejo eu já, tu a mi abundante.

 

A ti tocou-te a máquina mercante,

Que em tua larga barra tem entrado,

A mim foi-me trocando, e tem trocado

Tanto negócio, e tanto negociante.

 

Deste em dar tanto açúcar excelente

Pelas drogas inúteis, que abelhuda

Simples aceitas do sagaz Brichote.

 

Oh se quisera Deus, que de repente

Um dia amanheceras tão sisuda

Que fora de algodão o teu capote!

 

 

05 - A Maria dos povos, sua futura esposa

Discreta, e formosíssima Maria,

Enquanto estamos vendo a qualquer hora

Em tuas faces a rosada Aurora,

Em teus olhos, e boca o Sol, e o dia:

 

Enquanto com gentil descortesia

O ar, que fresco Adônis te namora,

Te espalha a rica trança voadora,

Quando vem passear-te pela fria:

 

Goza, goza da flor da mocidade,

Que o tempo trota a toda ligeireza,

E imprime em toda a flor sua pisada.

 

Oh, não aguardes, que a madura idade

Te converta em flor, essa beleza

Em terra, em cinza, em pó, em sobra, em nada.

 

06 - Epílogos (Juízo anatômico dos achaques que padecia o corpo da república)

Que falta nesta cidade?... Verdade.

Que mais por sua desonra?... Honra.

Falta mais que se lhe ponha?... Vergonha.

 

O demo a viver se exponha,

Por mais que a fama a exalta,

Numa cidade onde falta

Verdade, honra, vergonha.

 

Quem a pôs neste rocrócio?... Negócio.

Quem causa tal perdição?... Ambição.

E no meio desta loucura?... Usura.

 

Notável desaventura

De um povo néscio e sandeu,

Que não sabe que perdeu

Negócio, ambição, usura.

 

Quais são seus doces objetos?... Pretos.

Tem outros bens mais maciços?... Mestiços.

Quais destes lhe são mais gratos?... Mulatos.

 

Dou ao Demo os insensatos,

Dou ao Demo o povo asnal,

Que estima por cabedal,

Pretos, mestiços, mulatos.

 

Quem faz os círios mesquinhos?... Meirinhos.

Quem faz as farinhas tardas?... Guardas.

Quem as tem nos aposentos?... Sargentos.

 

Os círios lá vem aos centos,

E a terra fica esfaimando,

Porque os vão atravessando

Meirinhos, guardas, sargentos.

 

E que justiça a resguarda?... Bastarda.

É grátis distribuída?... Vendida.

Que tem, que a todos assusta?... Injusta.

 

Valha-nos Deus, o que custa

O que El-Rei nos dá de graça.

Que anda a Justiça na praça

Bastarda, vendida, injusta.

 

Que vai pela clerezia?... Simonia.

E pelos membros da Igreja?... Inveja.

Cuidei que mais se lhe punha?... Unha

 

Sazonada caramunha,

Enfim, que na Santa Sé

O que mais se pratica é

Simonia, inveja e unha.

 

E nos frades há manqueiras?... Freiras.

Em que ocupam os serões?... Sermões.

Não se ocupam em disputas?... Putas.

 

Com palavras dissolutas

Me concluo na verdade,

Que as lidas todas de um frade

São freiras, sermões e putas.

 

O açúcar já acabou?... Baixou.

E o dinheiro se extinguiu?... Subiu.

Logo já convalesceu?... Morreu.

 

À Bahia aconteceu

O que a um doente acontece:

Cai na cama, e o mal cresce,

Baixou, subiu, morreu.

 

A Câmara não acode?... Não pode.

Pois não tem todo o poder?... Não quer.

É que o Governo a convence?... Não vence.

 

Quem haverá que tal pense,

Que uma câmara tão nobre,

Por ver-se mísera e pobre,

Não pode, não quer, não vence.

 

 

07- A uma dama

Vês esse Sol de luzes coroado,

Em pérolas a Aurora convertida;

Vês a Lua, de estrelas guarnecida;

Vês o Céu, de planetas adornado?

 

O céu deixemos: vês, naquele prado,

A rosa com razão desvanecida,

A açucena por alva presumida,

O cravo por galã lisonjeado?

 

Deixa o prado: vem cá, minha adorada:

Vês desse mar a esfera cristalina

Em sucessivo aljôfar desatada?

 

Parece aos olhos ser de prata fina...

Vês tudo isto bem? Pois tudo é nada

À vista do teu rosto, Catarina.

 

08 - A instabilidade das cousas no mundo[1]

Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,

Depois da Luz se segue a noite escura,

Em tristes sombras morre a formosura,

Em contínuas tristezas a alegria.

 

Porém se acaba o Sol, por que nascia?

Se formosa a Luz é, por que não dura?

Como a beleza assim se transfigura?

Como o gosto da pena assim se fia?

 

Mas no Sol, e na Luz, falte a firmeza,

Na formosura não se dê constância,

E na alegria sinta-se tristeza.

 

Começa o mundo enfim pela ignorância,

E tem qualquer dos bens por natureza

A firmeza somente na inconstância.

 

 

09 - A certa personagem desvanecida

Um soneto começo em vosso gabo:

Contemos esta regra por primeira;

Já lá vão duas, e esta é a terceira,

Já este quartetinho está no cabo,

 

Na quinta torce agora a porca o rabo;

A sexta vá também d'esta maneira:

Na sétima entro já com gran canseira,

E saio dos quartetos muito brabo.

 

Agora nos tercetos que direi:

Direi que vós, Senhor, a mim me honrais

Gabando-vos a vós, e eu fico um rei.

 

N'esta vida um soneto já ditei;

Se d'esta agora escapo, nunca mais:

Louvado seja Deus, que o acabei.

 

 

10 - Aos principais da Bahia chamados caramurus

Um calção de pindoba a meia zorra

Camisa de urucu, mantéu de arara,

Em lugar de cotó, arco, e taquara,

Penacho de guarás em vez de gorra.

 

Furado o beiço, e sem temer que morra

O pai, que lho envazou cuma titara,

Porém a Mãe a pedra lhe aplicara

Por reprimir-lhe o sangue que não corra,

 

Alarve sem razão, bruto sem fé,

Sem mais leis, que as do gosto, quando erra,

De Paiaiá tornou-se em Abaeté.

 

Não sei onde acabou, ou em que guerra,

Só sei que deste Adão de Massapé,

Procedem os fidalgos desta terra.

 

 

11 - À procissão de cinza em Pernambuco

Um negro magro de sufulié justo,

Dois azorragues de um joá pendentes,

Barbado o Peres, mais dois penitentes,

Seis crianças com asas sem mais custo.

 

De vermelho o mulato mais robusto,

Três fradinhos meninos inocentes,

Dez ou doze brichotes mui agentes,

Vinte ou trinta canelas de ombro onusto.

 

Sem débita reverência seis andores,

Um pendão de algodão tinto em tijuco,

Em fileira dez pares de menores.

 

Atrás um cego, um negro, um mameluco,

Três lotes de rapazes gritadores:

É a procissão de cinza em Pernambuco.

 

 

12 - Milagres do Brasil São

Um branco muito encolhido,

Um mulato muito ousado,

Um branco todo coitado,

Um canaz todo atrevido;

O saber muito abatido,

A ignorância e ignorante

Muito ufana e mui farfante,

Sem pena ou contradição:

Milagres do Brasil são.

 

Quem um cão revestido em padre,

Por culpa da Santa Sé,

Seja tão ousado que

Contra um branco honrado ladre;

E que esta ousadia quadre

Ao bispo, ao governador,

Ao cortesão, ao senhor,

Tendo naus no maranhão:

Milagres do Brasil são.

 

Se este tal podengo asneiro

O pai o esvanece já,

A mãe lhe lembro que está

Roendo em um tamoeiro:

Que importa um branco cueiro,

Se o... É tão denegrido!

Mas se nomisto sentido

Se lhe esconde a negridão,

Milagres do Brasil são.

 

Prega o perro frandulário,

E como a licença o cega,

Cuida que em púlpito prega,

E ladra num campanário:

Vão ouvi-lo de ordinário

Tios e tias do Congo,

E se, suando o mondongo,

Eles só gabo lhe dão,

Milagres do Brasil são.

 

Que há de pregar o cachorro,

Sendo uma vil criatura,

Que não sabe de escritura

Mais que aquela o pôs forro?

Quem lhe dá ajuda e socorro

São quatro sermões antigos;

E se amigos tem um cão,

Milagres do Brasil são.

 

Um cão é o timbre maior

Da Ordem predicatória,

Mas não acho em toda a história

Que um cão fosse pregador,

Se nunca falta um senhor:

Que lhe alcance esta licença

De Lourenço por Lourença,

Que as pardas tudo farão,

Milagres do Brasil são.

 

Té em versos quer dar penada,

E por que o gênio desbroche,

Como é cão, a troche-moche

Mete a unha e dá dentada:

O Perro não sabe nada,

E se com pouca vergonha

Tudo abate, é porque sonha

Que sabe alguma questão,

Milagres do Brasil são.

 

Do Perro afirmam doutores

Que fez uma apologia

Ao Mestre da teologia,

Se da lua aos resplendores

Outra ao sol dos pregadores:

Late um cão a noite inteira,

E ela, seguindo a carreira,

Luz com mais ostentação,

Milagres do Brasil são.

 

Que vos direi do Mulato,

Que vos não tenha já dito,

Se será amanhã delito

Falar dele sem recato?

Não faltará um mentecapto,

Que como vilão de encerro

Sinta que dêem no seu perro,

E se porta como um cão:

Milagres do Brasil são.

 

Imaginais que o insensato

De canzarrão fala tanto

Porque sabe tanto ou quanto?

Não, se não porque é mulato;

Ter sangue de carrapato,

Seu estorraque de congo,

Cheirar-lhe a roupa amondongo,

É cifra da perfeição:

Milagres do Brasil são.

 

13 – Retrato / Dona Ângela

Anjo no nome, Angélica na cara

Isso é ser flor, e Anjo juntamente

Ser Angélica flor, e Anjo florente

Em quem, se não em vós se uniformara?

 

Quem veria uma flor, que a não cortara

De verde pé, de rama florescente?

E quem um Anjo vira tão luzente

Que por seu Deus, o não idolatrara?

 

Se como Anjo sois dos meus altares

Fôreis o meu custódio, e minha guarda

Livrara eu de diabólicos azares

 

Mas vejo, que tão bela, e tão galharda

Posto que os Anjos nunca dão pesares

Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda.

 

14 - Contemplando nas cousas do mundo

Neste mundo é mais rico, o que mais rapa:

Quem mais limpo se faz, tem mais carepa:

Com sua língua ao nobre o vil decepa:

O Velhaco maior sempre tem capa.

 

Mostra o patife da nobreza o mapa:

Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa;

Quem menos falar pode, mais increpa:

Quem dinheiro tiver, pode ser Papa.

 

A flor baixa se inculca por Tulipa;

Bengala hoje na mão, ontem garlopa:

Mais isento se mostra, o que mais chupa.

 

Para a tropa do trapo vazio a tripa,

E mais não digo, porque a Musa topa

Em apa, epa, ipa, opa, upa.

 

15 - E pois coronista sou

E pois coronista sou.

 

Se souberas falar também falaras

também satirizaras, se souberas,

e se foras poeta, poetaras.

 

Cansado de vos pregar

cultíssimas profecias,

quero das culteranias

hoje o hábito enforcar:

de que serve arrebentar,

por quem de mim não tem mágoa?

Verdades direi como água,

porque todos entendais

os ladinos, e os boçais

a Musa praguejadora.

Entendeis-me agora?

 

Permiti., minha formosa,

que esta prosa envolta em verso

de um Poeta tão perverso

se consagre a vosso pé,

pois rendido à vossa fé

sou lá Poeta converso

 

Mas amo por amar, que é liberdade.

 

16 - Ao padre Lourenço Ribeiro, homem pardo que foi vigário da freguesia do Passé[2]

Um branco muito encolhido,

Um mulato muito ousado,

Um branco todo coitado,

Um canaz todo atrevido;

O saber muito abatido,

A ignorância e ignorante

Muito ufana e mui farfante,

Sem pena ou contradição:

Milagres do Brasil são.

 

Quem um cão revestido em padre,

Por culpa da Santa Sé,

Seja tão ousado que

Contra um branco honrado ladre;

E que esta ousadia quadre

Ao bispo, ao governador,

Ao cortesão, ao senhor,

Tendo naus no maranhão:

Milagres do Brasil são.

 

Se este tal podengo asneiro

O pai o esvanece já,

A mãe lhe lembro que está

Roendo em um tamoeiro:

Que importa um branco cueiro,

Se o... É tão denegrido!

Mas se nomisto sentido

Se lhe esconde a negridão,

Milagres do Brasil são.

 

Prega o perro frandulário,

E como a licença o cega,

Cuida que em púlpito prega,

E ladra num campanário:

Vão ouvi-lo de ordinário

Tios e tias do Congo,

E se, suando o mondongo,

Eles só gabo lhe dão,

Milagres do Brasil são.

 

Que há de pregar o cachorro,

Sendo uma vil criatura,

Que não sabe de escritura

Mais que aquela o pôs forro?

Quem lhe dá ajuda e socorro

São quatro sermões antigos;

E se amigos tem um cão,

Milagres do Brasil são.

 

Um cão é o timbre maior

Da Ordem predicatória,

Mas não acho em toda a história

Que um cão fosse pregador,

Se nunca falta um senhor:

Que lhe alcance esta licença

De Lourenço por Lourença,

Que as pardas tudo farão,

Milagres do Brasil são.

 

Té em versos quer dar penada,

E por que o gênio desbroche,

Como é cão, a troche-moche

Mete a unha e dá dentada:

O Perro não sabe nada,

E se com pouca vergonha

Tudo abate, é porque sonha

Que sabe alguma questão,

Milagres do Brasil são.

 

Do Perro afirmam doutores

Que fez uma apologia

Ao Mestre da teologia,

Se da lua aos resplendores

Outra ao sol dos pregadores:

Late um cão a noite inteira,

E ela, seguindo a carreira,

Luz com mais ostentação,

Milagres do Brasil são.

 

Que vos direi do Mulato,

Que vos não tenha já dito,

Se será amanhã delito

Falar dele sem recato?

Não faltará um mentecapto,

Que como vilão de encerro

Sinta que dêem no seu perro,

E se porta como um cão:

Milagres do Brasil são.

 

Imaginais que o insensato

De canzarrão fala tanto

Porque sabe tanto ou quanto?

Não, se não porque é mulato;

Ter sangue de carrapato,

Seu estorraque de congo,

Cheirar-lhe a roupa amondongo,

É cifra da perfeição:

Milagres do Brasil são.

 

17 - Define a sua cidade

De dois ff se compõe

esta cidade a meu ver:

um furtar, outro foder.

 

Recopilou-se o direito,

e quem o recopilou

com dous ff o explicou

por estar feito, e bem feito:

por bem digesto, e colheito

só com dous ff o expõe,

e assim quem os olhos põe

no trato, que aqui se encerra,

há de dizer que esta terra

de dous ff se compõe.

 

Se de dous ff composta

está a nossa Bahia,

errada a ortografia,

a grande dano está posta:

eu quero fazer aposta

e quero um tostão perder,

que isso a há de perverter,

se o furtar e o foder bem

não são os ff que tem

esta cidade ao meu ver.

 

Provo a conjetura já,

prontamente como um brinco:

Bahia tem letras cinco

que são B-A-H-I-A:

logo ninguém me dirá

que dous ff chega a ter,

pois nenhum contém sequer,

salvo se em boa verdade

são os ff da cidade

um furtar, outro foder.

 

18 - Descreve a vida escolástica

Mancebo sem dinheiro, bom barrete,

Medíocre o vestido, bom sapato,

Meias velhas, calção de esfola-gato,

Cabelo penteado, bom topete;

 

Presumir de dançar, cantar falsete,

Jogo de fidalguia, bom barato,

Tirar falsídia ao moço do seu trato,

Furtar a carne à ama, que promete;

 

A putinha aldeã achada em feira,

Eterno murmurar de alheias famas,

Soneto infame, sátira elegante;

 

Cartinhas de trocado para a freira,

Comer boi, ser Quixote com as damas,

Pouco estudo: isto é ser estudante.

 

19 - À cidade da Bahia (2)

A cada canto um grande conselheiro.

que nos quer governar cabana, e vinha,

não sabem governar sua cozinha,

e podem governar o mundo inteiro.

 

Em cada porta um freqüentado olheiro,

que a vida do vizinho, e da vizinha

pesquisa, escuta, espreita, e esquadrinha,

para a levar à Praça, e ao Terreiro.

 

Muitos mulatos desavergonhados,

trazidos pelos pés os homens nobres,

posta nas palmas toda a picardia.

 

Estupendas usuras nos mercados,

todos, os que não furtam, muito pobres,

e eis aqui a cidade da Bahia.

 

 

20 - Aos vícios

Eu sou aquele que os passados anos

Cantei na minha lira maldizente

Torpezas do Brasil, vícios e enganos.

 

E bem que os descantei bastantemente,

Canto segunda vez na mesma lira

O mesmo assunto em plectro diferente.

 

Já sinto que me inflama e que me inspira

Talia, que anjo é da minha guarda

Dês que Apolo mandou que me assistira.

 

Arda Baiona e todo o mundo arda

Que a quem de profissão falta à verdade

Nunca a dominga das verdades tarda.

 

Nenhum tempo excetua a cristandade

Ao pobre pegureiro do Parnaso

Para falar em sua liberdade.

 

A narração há de igualar ao caso

E se talvez acaso o não iguala

Não tenho por poeta o que é Pegaso.

 

De que pode servir calar quem cala?

Nunca se há de falar o que se sente

Sempre se há de sentir o que se fa1a.

 

Qual homem pode haver tão paciente,

Que, vendo o triste estado da Bahia

Não chore, não suspire e não lamente?

 

Isto faz a discreta fantasia:

Discorre em um e outro desconcerto

Condena o roubo, increpa a hipocrisia.

 

O néscio, o ignorante, o inexperto

Que não elege o bom, nem mau reprova

Por tudo passa deslumbrado e incerto.

 

E quando vê talvez na doce trova

Louvado o bem e o mal vituperado

A tudo faz focinho, e nada aprova.

 

Diz logo prudentaço e repousado:

-Fulano é um satírico, é um louco,

De língua má, de coração danado.

 

Néscio, se disso entendes nada ou pouco,

Como mofas com riso e algazaras

Musas, que estimo ter, quando as invoco.

 

Se souberas falar, também falaras

Também satirizaras, se souberas

E se foras poeta, poetizaras.

 

A ignorancia dos homens destas eras

Sisudos faz ser uns, outros prudentes,

Que a mudez canoniza bestas feras.

 

Há bons, por não poder ser insolentes,

Outros há comedidos de medrosos,

Não mordem outros não? -por não ter dentes.

 

Quantos há que os telhados têm vidrosos,

E deixam de atirar sua pedrada,

De sua mesma telha receosos?

 

Uma só natureza nos foi dada

Não criou Deus os naturais diversos;

Um só Adão criou e esse de nada.

 

Todos somos ruins, todos perversos,

Só nos distingue o vício e a virtude,

De que uns são comensais, outros adversos

 

Quem maior a tiver do que eu ter pude,

Esse só me censure, esse me note,

Calem-se os mais chitom, e haja saúde.

 

21 -Descreve a confusão do festejo do Entrudo

Filhós, fatias, sonhos, mal-assadas,

Galinhas, porco, vaca, e mais carneiro,

Os perus em poder do pasteleiro,

Esguichar, deitar pulhas, laranjadas;

 

Enfarinhar, pôr rabos, dar risadas,

Gastar para comer muito dinheiro,

Não ter mãos a medir o taverneiro,

Com réstias de cebolas dar pancadas;

 

Das janelas com tanhos dar nas gentes,

A buzina tanger, quebrar panelas,

Querer em um só dia comer tudo;

 

Não perdoar arroz, nem cuscuz quente,

Despejar pratos, e alimpar tijelas:

Estas as festas são do Santo Entrudo.

 

22 - Solitário em seu mesmo quarto à vista da luz

Ó tu do meu amor fiel traslado

Mariposa entre as chamas consumida,

Pois se à força do ardor perdes a vida,

A violência do fogo me há prostrado.

 

Tu de amante o teu fim hás encontrado,

Essa flama girando apetecida;

Eu girando uma penha endurecida,

No fogo, que exalou, morro abrasado.

 

Ambos de firme anelando chamas,

Tu a vida deixas, eu a morte imploro

Nas constâncias iguais, iguais nas chamas.

 

Mas ai! que a diferença entre nós choro,

Pois acabando tu ao fogo, que amas,

Eu morro, sem chegar à luz, que adoro.

 

 

 

 

23 - Aos afetos e lágrimas derramadas

Ardor em firme coração nascido;

Pranto por belos olhos derramado;

Incêndio em mares de água disfarçado;

Rio de neve em fogo convertido:

 

Tu, que um peito abrasas escondido;

Tu, que em um rosto corres desatado;

Quando fogo, em cristais aprisionado;

Quando cristal, em chamas derretido.

 

Se és fogo, como passas brandamente,

Se és neve, como queimas com porfia?

Mas ai, que andou Amor em ti prudente!

 

Pois para temperar a tirania,

Como quis que aqui fosse a neve ardente,

Permitiu parecesse a chama fria.

 

 

24 - Admirável expressão que faz o poeta de seu atencioso silêncio

Largo em sentir, em respirar sucinto

Peno, e calo tão fino, e tão atento,

Que fazendo disfarce do tormento

Mostro, que o não padeço, e sei, que o sinto.

 

O mal, que fora encubro, ou que desminto,

Dentro no coração é, que sustento,

Com que para penar é sentimento,

Para não se entender é labirinto.

 

Ninguém sufoca a voz nos seus retiros;

Da tempestade é o estrondo efeito:

Lá tem ecos a terra, o mar suspiros.

 

Mas oh do meu segredo alto conceito!

Pois não me chegam a vir à boca os tiros

Dos combates, que vão dentro no peito.

 

25 - Definição do amor – romance

Mandai-me, Senhores, hoje,

que em breves rasgos descreva

do Amor a ilustre prosápia,

e de Cupido as proezas.

 

Dizem que da clara escuma,

dizem que do mar nascera,

que pegam debaixo d’água

as armas, que Amor carrega.

 

Outros, que fora ferreiro

seu pai, onde Vênus bela

serviu de bigorna, em que

malhava com grã destreza.

 

Que a dois assopros lhe fez

o fole inchar de maneira,

que nele o fogo acendia,

nela aguava a ferramenta.

 

Nada disto é, nem se ignora,

que o Amor é fogo, e bem era

tivesse por berço as chamas

se é raio nas aparências.

 

Este se chama Monarca,

ou Semideus se nomeia,

cujo céu são esperanças,

cujo inferno são ausências.

 

Um Rei, que mares domina,

Um Rei, o mundo sopeia,

sem mais tesouro que um arco,

sem mais arma que uma seta.

 

O arco talvez de pipa,

a seta talvez de esteira,

despido como um maroto,

cego como uma toupeira.

 

Um maltrapilho, um ninguém,

que anda hoje nestas eras

com o cu à mostra, jogando

com todos a cabra-cega.

 

Tapando os olhos da cara,

por deixar o outro alerta,

por detrás à italiana,

por diante à portuguesa.

 

Diz que é cego, porque canta,

ou porque vende gazetas

das vitórias, que alcançou

na conquista das finezas.

 

Que vende também folhinhas

cremos por coisa mui certa,

pois nos dá os dias santos,

sem dar ao cuidado tréguas;

 

E porque despido o pintam

é tudo mentira certa,

mas eu tomara ter junto

o que Amor a mim me leva.

 

Que tem asas com que voa

e num pensamento chega

assistir hoje em Cascais

logo em Coina, e Salvaterra.

 

Isto faz um arrieiro

com duas porradas tesas:

e é bem, que no Amor se gabe,

o que o vinho só fizera!

 

E isto é Amor? é um corno.

Isto é Cupido? má peça.

Aconselho que o não comprem

ainda que lhe achem venda.

 

Isto, que o Amor se chama,

este, que vidas enterra,

este, que alvedrios prostra,

este, que em palácios entra:

 

Este, que o juízo tira,

este, que roubou a Helena,

este, que queimou a Tróia,

e a Grã-Bretanha perdera:

 

Este, que a Sansão fez fraco,

este, que o ouro despreza,

faz liberal o avarento,

é assunto dos poetas:

 

Faz o sisudo andar louco,

faz pazes, ateia a guerra,

o frade andar desterrado,

endoidece a triste freira.

 

Largar a almofada a moça,

ir mil vezes à janela,

abrir portas de cem chaves,

e mais que gata janeira.

 

Subir muros e telhados,

trepar cheminés e gretas,

chorar lágrimas de punhos,

gastar em escritos resmas.

 

Gastar cordas em descantes,

perder a vida em pendências,

este, que não faz parar

oficial algum na tenda.

 

O moço com sua moça,

o negro com sua negra,

este, de quem finalmente

dizem que é glória, e que é pena.

 

É glória, que martiriza,

uma pena, que receia,

é um fel com mil doçuras,

favo com mil asperezas.

 

Um antídoto, que mata,

doce veneno, que enleia,

uma discrição, sem siso,

uma loucura discreta.

 

Uma prisão toda livre,

uma liberdade presa,

desvelo com mil descansos,

descanso com mil desvelos.

 

Uma esperança, sem posse,

uma posse, que não chega,

desejo, que não se acaba,

ânsia, que sempre começa.

 

Uma hidropisia d’alma,

da razão uma cegueira,

uma febre da vontade,

uma gostosa doença.

 

Uma ferida sem cura,

uma chaga, que deleita,

um frenesi dos sentidos,

desacordo das potências.

 

Um fogo incendido em mina,

faísca emboscada em pedra,

um mal, que não tem remédio,

um bem, que se não enxerga.

 

Um gosto, que se não conta,

um perigo, que não deixa,

um estrago, que se busca,

ruína, que lisonjeia.

 

Uma dor, que se não cala,

pena, que sempre atormenta,

manjar, que não enfastia,

um brinco, que sempre enleva.

 

Um arrojo, que enfeitiça,

um engano, que contenta,

um raio, que rompe a nuvem,

que reconcentra a esfera.

 

Víbora, que a vida tira

àquelas entranhas mesmas,

que segurou o veneno,

e que o mesmo ser lhe dera.

 

Um áspide entre boninas,

entre bosques uma fera,

entre chamas salamandra,

pois das chamas se alimenta.

 

Um basalisco, que mata,

lince, que tudo penetra,

feiticeiro, que adivinha,

marau, que tudo suspeita.

 

Enfim o Amor é um momo,

uma invenção, uma teima,

um melindre, uma carranca,

uma raiva, uma fineza.

 

Uma meiguice, um afago,

um arrufo, e uma guerra,

hoje volta, amanhã torna,

hoje solda, amanhã quebra.

 

Uma vara de esquivanças,

de ciúmes vara e meia,

um sim, que quer dizer não,

não, que por sim se interpreta.

 

Um queixar de mentirinha,

um folgar muito deveras,

um embasbacar na vista,

um ai, quando a mão se aperta.

 

Um falar por entre dentes,

dormir a olhos alerta,

que estes dizem mais dormindo,

do que a língua diz discreta.

 

Uns temores de mal pago,

uns receios de uma ofensa,

um dizer choro contigo,

choramingar nas ausências.

 

Mandar brinco de sangrias,

passar cabelos por prenda,

das palmitos pelos Ramos,

e dar folar pela festa.

 

Anal pelo São João,

alcachofras na fogueira,

ele pedir-lhe ciúmes,

ela sapatos e meias.

 

Leques, fitas e manguitos,

rendas da moda francesa,

sapatos de marroquim,

guarda-pé de primavera.

 

Livre Deus, a quem encontra,

ou lhe suceder ter freira;

pede-vos por um recado

sermão, cera e caramelas.

 

Arre lá com tal amor!

isto é amor? é quimera,

que faz de um homem prudente

converter-se logo em besta.

 

Uma bofia, uma mentira

chamar-lhe-ei, mais depressa,

fogo selvagem nas bolsas,

e uma sarna das moedas.

 

Uma traça do descanso,

do coração bertoeja,

sarampo da liberdade,

carruncho, rabuge e lepra.

 

É este, o que chupa, e tira,

vida, saúde e fazenda,

e se hemos falar verdade

é hoje o Amor desta era.

 

Tudo uma bebedice,

ou tudo uma borracheira,

que se acaba co’o dormir,

e co’o dormir começa.

 

O Amor é finalmente

um embaraço de pernas,

uma união de barrigas,

um breve tremor de artérias.

 

Uma confusão de bocas,

uma batalha de veias,

um reboliço de ancas,

quem diz outra coisa, é besta.

 



[1] Apesar de um titulo diferente, trata-se do mesmo poema que aparece sob nome de Inconstância dos bens do mundo.

[2] Apesar de um titulo diferente, trata-se do mesmo poema que aparece sob nome de Milagres do Brasil São


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